20 de fevereiro de 2012

AS LACUNAS NA LEI



1.INTRODUÇÃO

O problema das lacunas é de grande valia para os operadores do direito, que cedo ou tarde podem se deparar com questões cujas soluções não se encontram explicitamente no ordenamento jurídico.

Para a elaboração do trabalho, foram utilizadas obras e artigos de renomados autores, sob um enfoque teórico-documental. O tema foi escolhido com o intuito de contribuir para uma reflexão sobre a complexidade do sistema jurídico.

Abaixo, Streck (2007) ressalta a importância da discussão em torno da existência ou não das lacunas:

“Aliás, a discussão sobre a existência (ou não) de lacunas no direito assume relevância, basicamente, em dois aspectos: em primeiro lugar, a discussão é importante para a própria dogmática jurídica, na medida em que a tese das lacunas serve como forte entendimento norteador e, também, como sustentáculo ao direito visto de maneira circular e controlado; em segundo lugar, serve igualmente, como argumento desmi(s)tificador do próprio dogma do direito baseado no modelo napoleônico, pois pode-se entender, sem dúvida, que, quando o juiz está autorizado/obrigado a julgar nos termos dos arts. 4º da LICC e 126 do CPC (isto é, deve sempre proferir uma decisão), isso significa que o ordenamento é, dinamicamente, completível, através de uma auto-referência ao próprio sistema jurídico”.

Dito isso, desenvolver-se-á tema segundo os parâmetros acima expostos.

2. AS LACUNAS

Consoante salientado na introdução, o tema em questão é polêmico e a doutrina não chegou a um consenso sobre o conceito de lacuna. Nem sequer se elas existem ou não. De toda forma, a conceituação abaixo é, pelo menos, aquela vista com maior predominância entre os doutrinadores.

Segundo Lemke (2005) lacuna da lei é a ausência da norma legal. O referido autor (2005) cita Larenz e expõe que lacuna “significa a ausência de uma regra determinada, que seria de se esperar no contexto global daquele sistema jurídico”.

Nesse contexto, a lacuna seria a inexistência de uma norma para regular um caso concreto, ou seja, o silêncio da lei. Falar em lacuna significa dizer que o direito objetivo não oferece, em princípio, uma solução para o desate de uma questão jurídica.

Engisch, lembrado por Diniz (2002), entende que a “lacuna é uma imperfeição insatisfatória dentro da totalidade jurídica, representa uma falha ou uma deficiência do sistema jurídico”.

Por sua vez, Diniz (2002) conceitua as lacunas dizendo que elas são “faltas ou falhas de conteúdos de regulamentação jurídico-positiva para determinadas situações fáticas, que admitem sua remoção por uma decisão judicial jurídico-integradora”.

Para Canaris, mencionado por Ávila (2006):

“Uma lacuna é uma incompletude contrária ao plano normativo (aferível) no âmbito do direito positivo (isto é, da lei no âmbito do seu possível sentido literal e do direito consuetudinário), mensurada pelo critério aferidor de todo o ordenamento jurídico vigente. Ou: constatamos uma lacuna quando a lei, nos limites do seu possível sentido literal e do direito consuetudinário não contêm uma regra, embora o ordenamento jurídico na sua totalidade a exija.”

Ao se visualizar o problema de maneira distinta, Reale (1988) parte da premissa que o sistema jurídico compreende-se de uma estrutura plural e complexa e entende que a lacuna não é o vazio nem é a inadequação, mas apenas uma tensão não resolvida temporariamente.

3. A PROBLEMÁTICA DA EXISTÊNCIA OU INEXISTÊNCIA DAS LACUNAS

Para não deixar o jurisdicionado sem uma resposta diante de uma situação lacunosa, o ordenamento jurídico brasileiro preceitua que o magistrado deve recorrer à utilização da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito, não se eximindo de sentenciar ou despachar naquele caso considerado lacunoso. É o que determinam o art. 4° da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) e o art. 126 do Código de Processo Civil (CPC).

Já no passado, o art. 4° do Código Napoleônico ditava a obrigação do juiz de dizer o direito em qualquer situação, proibindo-o de se recusar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade ou da insuficiência da lei, sob pena de ser processado por denegação da justiça.

Historicamente, tem-se que, em 1790, o chamado referé législatif (recurso legislativo) obrigava todo juiz a consultar o Poder Legislativo em caso de dúvida. Como o momento era de revolução, dentro de um cenário de medo e instabilidade, a magistratura utilizou-se freqüentemente do recurso legislativo para não se comprometer, o que acabou prejudicando a atividade judicante. Em decorrência desse fato, os criadores do Código Napoleônico substituíram o recurso legislativo pelo art. 4° que impõe ao juiz a obrigação de julgar sempre.

Perelman (2004) analisa a gênese do art. 4° do Código de Napoleão sob outra ótica. Ele parte da premissa que, naquela época, através da influência da escola da exegese, tal dispositivo possuía a finalidade de obrigar o juiz “a tratar o sistema de direito como completo, sem lacunas, como coerente, sem antinomias e como claro, sem ambigüidades que dêem azo a interpretações diversas”.

A coibição de denegação de justiça insculpida no princípio da proibição do non liquet também é encontrada em diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros, como, por exemplo, o uruguaio, o português, o espanhol, o argentino, o italiano, o peruano, o mexicano, o austríaco, dentro outros.

Maximiliano (2008) entende que “bem ameaçadas ficariam a tranqüilidade pública e a ordem social, se ao juiz fosse lícito abster-se de julgar, ao invés de suprir as deficiências da lei (...)”.

Dessa forma, constata-se que, com ou sem lacuna, o julgamento pelo magistrado é primordial, afinal, a função jurisdicional decorre da natureza do Poder Judiciário. Entretanto, o tema das lacunas no direito é controvertido, apresentando diversas opiniões e posicionamentos doutrinários, dentre os quais aqueles que negam a sua existência e, ainda, outros que a admitem.

3.1. Correntes que negam a existência das lacunas

Dentre as correntes doutrinárias que negam a existência de lacunas no ordenamento jurídico, destacam-se a escola da exegese e o positivismo jurídico.

A escola da exegese acreditava que o direito era isento de lacunas e que o dever do intérprete era tão-somente o de tornar explícito aquilo que já estava implícito na mente do legislador.

O positivismo jurídico entendia que admitir a livre pesquisa do direito, ou seja, aceitar a sua criação pelo juiz significaria infringir o princípio da legalidade, o que iria propiciar decisões arbitrárias.

Kelsen (2009) comungou do entendimento que, na hipótese da ordem jurídica não estatuir qualquer dever de um indivíduo realizar determinada conduta, é porque permite essa conduta; logo, tudo o que não é proibido é permitido e, conseqüentemente, não pode haver lacuna na ordem jurídica.

A crítica que se faz a esse posicionamento kelseniano é que nem sempre o que não está explicitamente proibido está permitido. Freqüentemente, aquilo que não foi expressamente vedado está implicitamente proibido. Por exemplo, se existe uma regra dizendo que não se pode adentrar com cães e gatos em um determinado estabelecimento comercial, não significa dizer que esse estabelecimento permite a entrada de um urso em seu recinto.

Conforme Lemke (2005), “a corrente que defende a inexistência de lacunas, quer na lei, quer no direito, assenta que o sistema jurídico, forma um todo orgânico, que disciplina todos os comportamentos humanos”.

Cappi e Cappi (2004) citam as idéias de Dworkim que negam a existência das lacunas no direito, ao argumento de que o juiz não tem poder criativo, sendo o direito íntegro e, por isso, não admitiria qualquer lacuna.

Há também a teoria dos dois espaços jurídicos: o espaço jurídico pleno e o espaço jurídico vazio.

O primeiro contempla as condutas normalizadas, enquanto o segundo prevê as demais condutas, sendo que elas não seriam objeto do direito, isto é, seriam juridicamente irrelevantes, nem lícitas e nem ilícitas.

Para a última corrente, ou existe uma norma que regula a conduta ou, se não existir a que o faça, tem-se que o fato não regulado será irrelevante para o mundo jurídico, pertencendo ao espaço jurídico vazio.

Bobbio (1995) discorre sobre a teoria do espaço jurídico vazio e diz que para essa corrente:

“não faz sentido falar de lacunas do direito, porque, dado um fato qualquer, ou existe uma norma que o regule e, neste caso, não há evidentemente lacuna alguma, ou não existe nenhuma norma que o regule, e nem também nesse caso se pode falar de lacuna, visto que o fato não regulado é juridicamente irrelevante, porque pertence ao “espaço jurídico vazio”, isto é, ao espaço que está além da esfera jurídica. Em outros termos, o fato não previsto por nenhuma norma é um fato situado fora dos limites do direito”.

Outra teoria que nega a existência das lacunas é a da norma geral exclusiva que, em síntese, entende que toda conduta humana é regulada por uma norma específica ou pela norma geral exclusiva. Para essa teoria:

“não existem fatos juridicamente irrelevantes e não existem lacunas, porque cada norma jurídica particular que submete a uma dada regulamentação certo atos é sempre acompanhada de uma segunda norma implicitamente nela contida, a qual exclui da regulamentação da norma particular todos os atos não previstos por esta última e os submete a uma regulamentação jurídica antitética (por isto a segunda norma é dita geral e exclusiva)”.

Bobbio (1995) explica com um exemplo essa teoria, ao dizer que “se, existe uma norma que diz: ‘É proibido importar cigarros’, tal norma contém implicitamente em si uma outra norma que diz: ‘É permitido importar todas as outras coisas que não sejam cigarros’”. Assim, para essa teoria até:

“mesmo um sistema normativo constituído por uma única norma é um ordenamento completo, pois aquela única norma é acompanhada por uma segunda norma implícita que fecha o próprio sistema, atribuindo a qualificação de lícito a todos os fatos não previstos pela primeira norma”.

Segundo Cappi e Cappi (2004), “os críticos da teoria da norma geral exclusiva ponderam que se esta fosse a vontade do legislador, seria desnecessária a inclusão do art. 4° da LICC (...)”.

Outra crítica que se faz a essa teoria reside na circunstância em que, contrariamente ao que ela expõe, nem todas as situações não abarcadas por uma norma particular são resolvidas mediante determinações ao contrário, mas sim através da analogia, ou seja, busca-se uma solução idêntica à da norma escrita que melhor irá regular uma situação não prevista.

3.2. Correntes que admitem a existência de lacunas

Para Diniz (2002), a idéia de lacunas é vista em uma concepção de sistema jurídico. Assim, dentro de um sistema fechado e completo, em relação a um conjunto de casos e condutas, não há que se falar em lacunas, enquanto em um sistema aberto e incompleto, pode-se se falar na existência de lacunas.

Nesse norte, a lacuna está diretamente relacionada à incompletude do sistema. Na lição de Diniz (2002), o sistema seria completo caso proporcionasse uma explicação para todos os fenômenos que recaem em seu âmbito.

Em seu trabalho, Diniz (2002) cita Alchourrõn e Bulygin para enunciar que “as idéias de completude ou incompletude do sistema, de seu aspecto uno ou multifário, de sua abertura ou fechamento é que possibilitam a formulação de uma definição explícita de lacunas”.

Conforme Bobbio (1995), a completude consiste na propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular cada caso. Com isso, a completude pode ser traduzida por falta de lacunas, enquanto a incompletude se verifica na hipótese de falta de uma norma para regular determinado caso concreto.

A corrente que acredita na existência das lacunas parte do pressuposto que o direito é um sistema aberto, em constante adaptação, sendo que o legislador não tem condições de prever tudo o que pode acontecer. Uma ordem jurídica completa e exaustiva seria pura quimera.

Estudiosa no assunto, Diniz (2002) afirma que a existência de lacunas no direito é uma realidade inquestionável.

No entanto, é importante destacar o entendimento de Perelman (2004), segundo o qual “não se pode, pura e simplesmente, identificar a existência de lacunas com o fato de um sistema formal ser incompleto (...)”.

De acordo com Perelman (2004), somente se pode falar na existência das lacunas no direito depois de exauridas todas as tentativas de interpretar a lei e não se chegar a um resultado satisfatório.

Ao se analisar o ordenamento jurídico brasileiro, infere-se que o próprio legislador admitiu a hipótese de existência das lacunas. Nota-se que o magistrado tem o dever de, no caso concreto, buscar a solução para integrar e preencher as omissões do direito, como se depreende do art. 4º da LICC e do art. 126 do CPC, que consagra o princípio da proibição do non liquet, ou seja, da vedação da denegação de entrega da tutela jurisdicional.

Para uma melhor ilustração do tema, colacionam-se abaixo os referidos dispositivos legais:

“Art. 4º do Decreto-Lei 4.657/42 (LICC) – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

“Art. 126 do CPC. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito”.

Portanto, não havendo normas legais para solução do caso concreto, o juiz deverá se utilizar da analogia, dos costumes e dos princípios gerais de direito e, com isso, obter elementos para decidir aquela situação que era obscura ou lacunosa.

Diniz (2002) observa que não há como o legislador prever tudo o que pode acontecer no futuro. Dessa maneira, podem ocorrer situações em que não há normas para tratar daquele assunto. Além disso, a sociedade evolui com o passar dos anos e novas situações tendem a surgir. Conseqüentemente, existirão momentos em que faltarão normas para reger o caso concreto.

4. BREVE HISTÓRICO SOBRE AS LACUNAS

Depreende-se, então, que o problema das lacunas relaciona-se com a idéia de sistema. Conforme Lemke (2005), Gilissen distinguiu as fases na evolução desse dilema, são elas: a do sistema irracional, a do direito consuetudinário, a dos tempos modernos e a do período de preponderância da lei.

As primeiras noções acerca da lacuna surgiram no período das ordálias e do julgamento divino. Naquela época, o juízo das ordálias era utilizado para suprir as regras jurídicas.

Já nos séculos XIII ao XVI, na fase do direito costumeiro, Souza (1993) destaca que:

“era o senhor feudal quem aplicava as normas por ele editadas, nos limites do seu feudo. Contudo, a presença predominante do direito costumeiro não escrito torna difícil a percepção da ocorrência de lacunas. A questão, sob este prisma, é vista como simples desconhecimento ou ignorância de um costume existente por pressuposição”.

Posteriormente, no período da idade moderna, entre os séculos XVI e XVIII, surgiu um grande volume de normas escritas, o que propiciou o aparecimento da lacuna.

Entretanto, destaca Souza (1993) que “faltam ainda alguns requisitos para que a lacuna apareça como problema. Isto porque a simples constatação de dificuldades não resolúveis por regras próprias é insuficiente para caracterizar esta situação”.

Nos fins do século XVIII, aconteceu o fenômeno da positivação do direito e, aí se consolidou, o problema das lacunas. Faz-se mister destacar que:

“Os princípios de organização política, incorporados pelo direito, a idéia de soberania nacional e de separação dos poderes, somados ao primado da lei, como expressão da vontade popular, e à concepção do direito como sistema normativo, propiciam as condições políticas e jurídicas para o amadurecimento das reflexões acerca das lacunas”.

Perelman (2004) entende que:

“O problema das lacunas nasceu com o princípio da separação dos poderes que impõe ao juiz a obrigação de aplicar um direito preexistente e que se supõe ser-lhe conhecido. Antes da Revolução Francesa, este problema não existia, pois o juiz devia encontrar a regra aplicável: na ausência de uma regra expressiva, podia procurar outras fontes do direito além da lei positiva e, se as fontes não fossem concordes, importava saber em que ordem deveriam ser classificadas essas fontes de direito supletivo. Como não era proibido aos juízes formularem regras por ocasião de litígios (“as sentenças de regulamentação”) e não tinham de motivar suas sentenças de forma expressa, compreende-se que o problema das lacunas não tenha surgido antes do século XIX”.

Streck (2007) concorda que o problema da lacuna origina a partir do século XIX e também relaciona o seu surgimento com o fenômeno da positivação do direito. No mesmo sentido, Diniz (2002) entende que a idéia de lacuna está ligada à de sistema, visto ele como uma totalidade ordenada.

Por sua vez, Bobbio (1995) menciona que, nos séculos XVII e XVIII, existiam escritores que concebiam a existência de lacunas e afirmavam que o juiz deveria resolvê-las aplicando o direito natural. Dentre esses autores, Bobbio (1995) destacou Hobbes, no De cive, cap. XIV, § 14. Nesse sentido:

“Uma vez que é impossível promulgar leis gerais com as quais se possa prever todas as controvérsias a surgir, e são infinitas, evidencia-se que, em todo caso não contemplado pelas leis escritas, se deve seguir a lei da equidade natural, que ordena atribuir a pessoas iguais coisas iguais (...)”.

Nota-se que Hobbes já comungava do entendimento segundo o qual o legislador não consegue prever todas as circunstâncias que poderão ocorrer dentro de um caso concreto.

Ademais, Bobbio (1995) fez referência a obra intitulada Jus naturae in usum auditorum (1774), de Achenwall, pois ele afirmava que o direito natural se aplica subsidiariamente ao direito positivo no caso de existir lacunas nesse último. Conclui afirmando que “esta concepção do direito natural como instrumento para colmatar as lacunas do direito positivo sobrevive até o período das codificações, e mais, tem uma extrema propagação na própria codificação”.

5. AS PRINCÍPAIS CLASSIFICAÇÕES DE LACUNAS


Existe na doutrina uma enorme gama de classificação das lacunas, com nomenclatura bastante variada, cada qual sob uma perspectiva diversa. Para se evitar que o tema fique enfadonho, apresenta-se abaixo somente as principais classificações acerca das lacunas.

Diniz (2002) aponta que a mais antiga das classificações se deve a Zitelmann, segundo o qual as lacunas se dividem em autênticas e não-autênticas. Aquela será observada quando a lei não dispõe de resposta para determinado caso concreto, enquanto esta será vislumbrada quando a lei apresenta uma solução indesejável para determinado fato-tipo. Nesse ínterim, considera-se que a solução prevista pela lei é insatisfatória. A autora (2002) observa que apenas a lacuna autêntica é uma lacuna jurídica, considerada propriamente dita, pois a não-autêntica é apenas uma lacuna política ou crítica.

Bobbio (1995), de outro turno, estabelece a existência de lacunas reais (iure conditio) e lacunas ideológicas ou impróprias (iure condendo). Nessa classificação, as lacunas reais são lacunas propriamente ditas, enquanto as lacunas ideológicas surgem a partir de uma confrontação entre o que é um sistema real e um sistema ideal, significando a ausência de norma justa.

Há, também, uma classificação que distingue as lacunas em intencionais e não-intencionais. As intencionais são as que o legislador, propositadamente, deixa em aberto e as não-intencionais são aquelas que surgiram, ou porque o legislador não observou o direito com a precisão necessária, ou porque a matéria não existia na época que a norma foi elaborada.

Diniz (2002) lembra que a doutrina alemã distinguiu as lacunas em primárias ou originárias e secundárias, posteriores ou derivadas. As primeiras existem desde o surgimento da norma e as segundas são as que aparecem posteriormente, decorrendo de modificações nos valores ou das situações de fato.

Lemke (2005), por sua vez, expõe a distinção entre as lacunas normativas e as axiológicas. As primeiras referem-se à ausência de solução no sistema e, quando se trata das últimas, não há ausência de regra, mas sim uma regra insatisfatória ou injusta na opinião do aplicador da decisão. De acordo com Lemke (2005), “as normativas levam a uma interpretação praeter legem, enquanto as axiológicas produzem uma interpretação contra legem”.

Perelman (2004) destaca a classificação das lacunas em intra legem, praeter ou contra legem. A lacuna intra legem resulta da omissão do legislador. A praeter legem “são criadas pelos intérpretes que, por uma ou outra razão, pretendem que certa área deveria ser regida por uma disposição normativa, quando não o é expressamente (...)”. E a lacuna contra legem aparece quando os “intérpretes, desejando evitar a aplicação da lei, em dada espécie, restringem-lhe o alcance introduzindo um princípio geral que a limita”.

Finalmente, Diniz (2002) menciona que:

“ante a consideração dinâmica do direito e a concepção multifária do sistema jurídico, que abrange um subsistema de normas, de fatos e de valores, (...) três são as principais espécies de lacunas: 1ª) normativa, quando se tiver ausência de norma sobre determinado caso; 2ª) ontológica, se houver norma, mas ela não corresponder aos fatos sociais, (por exemplo, o grande desenvolvimento das relações sociais e o progresso técnico acarretarem o ancilosamento da norma positiva); e 3ª) axiológica, no caso de ausência de norma justa, ou seja, quando existe um preceito normativo, mas, se for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta”.

Conforme dito, existem diversas outras classificações, mas as apresentadas acima são as mais importantes para a compreensão do tema.

6. VAZIO DA LEI


Destaca Lemke (2005) que os vazios da lei não são necessariamente lacunas. Segundo o autor (2005), vazios da lei são espaços não normalizados e, ao citar Larenz, expor que:

“As opiniões, crenças, pensamentos, sentimentos, simpatias, não são, por sua natureza, reguláveis pelo direito, embora possam ser valoradas pela ordem jurídica, como certas relações intersubjetivas, regras de decoro e usos sociais, também podem deixar de ser reguladas, segundo a concepção jurídica e cultural de cada comunidade”.

Outra questão importante para ser lembrada é que nem tudo que é imperfeito é insatisfatório. Diniz (2002), para ilustrar a situação, cita o exemplo da “obra aberta” de Umberto Eco, em que é um tipo de obra, um quadro que não está acabado. Contudo, “ele está imperfeito, mas não insatisfatório, porque aquele que o observa tem a possibilidade de completá-lo”.

Salienta Diniz (2002) que a “lacuna em Engisch está referida a um todo que presuntivamente deveria ser completo, entrelaçando-se o conceito de lacuna com o de direito”. Ainda em conformidade com a citada autora (2002), “entende-se ser impróprio falar-se em lacunas, quando o legislador, utilizando conceitos normativos indeterminados, cláusulas gerais e discricionárias, deixa uma margem de flexibilidade ao julgador”.

Sabe-se que conceitos normativos indeterminados são aqueles de conteúdo impreciso, genérico, cuja interpretação será realizada dentro do caso concreto, tendo como norte os vetores indicados pelo próprio sistema. Além disso, constata-se que as cláusulas gerais possuem o cunho de permitir maior mobilidade ao sistema jurídico.

A margem citada pela doutrinadora (2002), acima, faz-se importante dentro de uma sociedade que se encontra em constante transformação, propiciando um modelo jurídico menos rígido, com uma certa abertura ao papel da jurisprudência, cuja interpretação das regras e princípios possibilitará a construção de um direito mais próximo da realidade vivida pelos jurisdicionados.

7. ANALOGIA, COSTUME E PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO


Conforme dito alhures, quando omissa a lei, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, nessa ordem. Buscará, com isso, realizar a chamada colmatação de lacunas. É a conclusão que se extrai dos arts. 4° da LICC e 126 do CPC. Tais normas estabelecem a indeclinabilidade da jurisdição, já que o juiz sempre deverá resolver a lide entre as partes.

Dessa forma, vislumbrada uma lacuna, primeiramente o magistrado socorre-se à analogia. Utilizar-se da analogia significa aplicar a um caso não regulado uma norma que se enquadra em um caso semelhante.

Diniz (2002) lembra que “o recurso analógico não é recente. Já no direito romano era conhecida a tarefa supletiva da analogia”. Ela (2002) ensina que:

“O processo analógico consiste em aplicar uma disposição legal a um caso não qualificado normativamente, mas que possui algo semelhante com o fato-tipo por ela previsto. Porém, para que tal se dê deve-se considerar como relevante alguma propriedade que seja comum a ambos”.
Oportuno lembrar, neste momento, algumas peculiaridades de ramos do direito, como, por exemplo, o penal e o fiscal, em que “é necessário uma regra prévia para motivar tanto uma pena quanto uma imposição fiscal (...)”. Sabe-se, todavia, que no direito civil a questão é vista de forma diferente e a aplicação da analogia é utilizada em larga escala.

Já “no direito administrativo, a existência de uma lacuna não dá nenhuma liberdade de ação à administração pública: pelo contrário, limita a liberdade de ação do poder administrativo (...)”.

Acerca da natureza jurídica da analogia, discute-se se ela é um mecanismo interpretativo, uma fonte jurídica ou um processo de integração de normas. Diniz (2002) comunga do entendimento que a analogia é um procedimento que serve para integrar normas.

O costume, por sua vez, entrará em cena quando a lei for omissa e não for possível a utilização da analogia, no modo antes apresentado.

Em conformidade com Diniz (2002), “o recurso ao costume só tem cabimento quando se esgotarem todas as potencialidades legais, o que revela a presença, em nosso ordenamento, de uma ideologia liberal, traduzindo o propósito de garantir a segurança jurídica e o culto à lei”.

Interessante destacar que “a maioria dos juristas entendem que o costume jurídico é formado por dois elementos necessários: o uso continuado e a convicção jurídica, ou melhor, a convicção da obrigatoriedade”.

Quanto aos princípios gerais do direito, tem-se que apenas serão invocados quando não houver lei ou costume aplicável ao ponto controvertido. Eles podem ser entendidos como regras consagradas na ciência do direito. Na maioria das vezes, estão implícitos nas normas jurídicas.

A título de exemplo, cita-se a seguir alguns princípios contidos no ordenamento jurídico pátrio: moralidade, igualdade de direitos e deveres frente ao ordenamento jurídico, proibição de locupletamento ilícito, função social da propriedade, boa-fé etc.

Por último, convém tecer pequenos comentários sobre a equidade que está presente implicitamente nos arts. 4° e 5° da LICC, muitas vezes entendida com a justiça do caso singular, ou seja, peculiar.

A equidade é elemento de integração e será utilizada após esgotados os mecanismos previstos no art. 4° da LICC, estando proibida como regra geral, nos termos do art. 127 do CPC. Relaciona-se com os fins da norma, que decorrem do bem comum da sociedade.

Dessa maneira, utilizando-se da equidade, o magistrado terá certo limite de discricionariedade, que não se confunde com arbitrariedade, pois terá que julgar observando uma certa lógica jurídica, buscando equilibrar e respeitar os interesses da coletividade e dos particulares envolvidos no litígio.

8. QUESTÕES COMPLEXAS ACERCA DAS LACUNAS


O presente capítulo objetiva trazer à baila algumas questões que geraram ou ainda produzem discussões acerca da compreensão do tema das lacunas. Primeiramente, aborda-se a celeuma dos jus positivistas sobre o assunto.

Para tanto, Cappi e Cappi (2004) citam Radbruch para mencionarem a extensão do drama dos jus positivistas, que chega a ser um paradoxo. Nesse sentido:

“Como é possível de um lado obrigar a magistratura a dar uma resposta a toda questão, se, do outro lado, esta resposta não se encontra na legislação, que pela teoria da separação e autonomia dos poderes somente o legislador pode emanar?”

De acordo com a indagação apresentada, existe um impasse para os jus positivistas, partindo das premissas que o dever de legislar incube ao legislador e o juiz não pode criar o direito. Como balancear essa regra com a que proíbe a recusa do juiz de resolver qualquer controvérsia em caso de lacunas?

Os jus positivistas encontram a resposta a esse problema admitindo que as lacunas são um fenômeno aparente, pois a hermenêutica a preenche por um processo de auto-regulamentação e auto-integração.

Outro ponto importante é lembrado por Perelman (2004) ao expor que “a obrigação de preencher as lacunas da lei concede, ipso facto, ao juiz a faculdade de elaborar normas”. Então, de acordo com o autor (2004), surge outro impasse, “como evitar que o juiz exerça esse poder de modo arbitrário, onde encontrar garantias de imparcialidade?”

Mais a frente tal doutrinador (2004) responde a indagação acima, ao dizer que, “na ausência de uma regra expressa, o juiz deverá inspirar-se no espírito do direito, ou seja, nos valores e nas técnicas que outros textos protegem ou utilizam”.

Melhor desenvolvendo o raciocínio acima, tem-se que o juiz e os demais operadores do direito podem e devem interpretar o direito em vistas de aperfeiçoá-lo. Portanto, o magistrado, no caso de lacunas, está autorizado a colmatá-las. Sem embargo, essa medida não se confunde com alterar ou substituir o direito. Pode interpretar o direito de uma forma sistemática, hábil, analisando-o como um todo, com suas regras e princípios. Entretanto, exercer o direito de modo arbitrário e de maneira contrária aos ditames legais é inconcebível, posto que haverá um ponto de partida e um tramite a serem seguidos.

8.1. A distinção entre lacunas da lei e lacunas do direito

Segundo Streck (2007), “é necessário distinguir bem as fórmulas ‘lacunas da lei’ e ‘lacunas do direito’”.

De acordo com o mencionado autor (2007), considerável parte da doutrina brasileira faz confusão sobre o assunto, porque o conceito de lacuna “técnica” não pode conviver com os arts. 4° da LICC e 126 do CPC.

Na linha do raciocínio de Streck (2007), considerar que o direito possui lacuna seria o mesmo que enxergar o direito como sinônimo de lei. “Se o direito extrapola a lei, fica mais difícil de se falar em lacunas”. Lembra o doutrinador (2007) que os “princípios são normas e devem ser entendidos no contexto da ruptura paradigmática pela qual se superou o positivismo”.

Importante salientar que Streck (2007) não defende o dogma da completude do direito, mas apenas critica a forma que a maioria da doutrina brasileira coloca o problema das lacunas.

Nery Júnior e Nery (2008) também entendem que “pode haver lacuna na lei, mas não no direito”.

Por sua vez, Ferraz Júnior (2006), citando a Reale, enuncia que:

“não há de se confundir ordenamento legal e ordenamento jurídico, não podendo o primeiro deixar de ter casos omissos, enquanto o segundo, sendo o sistema de normas em sua plena atualização, não pode ter lacunas e deve ser considerado, em seu todo, vigente e eficaz”.

Admite-se, então, a impossibilidade do legislador em aprovar lei para todos os fatos concretos da vida. Todavia, para eles isso não significa que existam lacunas no direito. Para tais expertos é até possível de se cogitar lacunas na lei, mas não no direito, pois nele haverá sempre uma solução para o caso concreto.

Nessa seara, é feita uma distinção entre o ordenamento jurídico e o legislativo, sendo que aquele não possui lacunas, até porque corrige as imperfeições deste que, por sua vez, possui omissões que são supridas através do primeiro.

Contudo, essa distinção também não é pacífica, pois, conforme já foi dito em outras passagens deste estudo, existem autores que expõem que as lacunas do direito são deficiências do direito positivo, entendendo que ele possui lacunas materiais.

Assim, percebe-se que não há consenso entre os doutrinadores, uma vez que existe corrente que não admite a existência de lacunas no direito; corrente que admite lacunas apenas na lei (lacuna formal) e corrente que admite lacunas no direito (lacuna material).

8.2. A afirmação paradoxal que no direito há lacunas e ao mesmo tempo não existem

Diniz (2002) traz a afirmação de que “o direito é sempre lacunoso, mas é também, ao mesmo tempo, sem lacunas”.

Em um primeiro momento, a assertiva acima parece paradoxal e, por isso, faz-se importante uma explicação mais detalhada de seu conteúdo.

O direito é lacunoso porque, como já dito neste trabalho, a vida na sociedade sofre paulatinamente mudanças, acompanhando o natural progresso, e o direito, a seu turno, caminha no sentido de acompanhar tais evoluções. De toda sorte, os legisladores, ao desenvolverem os textos legais, em não raras hipóteses, não conseguem prever o que está por vir. Conseqüentemente, em um momento futuro, é bastante possível, e provável, que algum fato ocorra e o direito positivado não tenha explicitamente uma resposta para aquele novo fato. Dessa maneira, estaria presente uma lacuna.

Por outro lado, conforme salienta Diniz (2002):

“o próprio dinamismo do direito mobiliza soluções que serviriam de base para qualquer decisão, seja ela do órgão jurisdicional, seja ela do Poder Legislativo. Assim sendo, sempre haverá um direito para quaisquer relações que se instaurarem no convívio social, por mais intricadas, heterogêneas ou excêntricas que sejam (...)”.

De acordo com a autora (2002), o direito auto-integra-se por meio do processo de aplicação e criação de normas pelo legislativo e pelo órgão judicial. Com isso, tem-se que o sistema jurídico não é completo, mas sim completível.

Dentro desse contexto, as lacunas no direito são vistas como sendo provisórias, uma vez que são integradas pelo próprio direito. Logo, o problema da lacuna pode solucionado através de um ato jurisdicional ou mediante um ato legislativo.

Diniz (2002), cita o espanhol De Castro, que assevera que:

“Não há lacunas, porque o direito se completa a si mesmo, mediante a atividade do juiz. Há lacunas porque se reconhecem casos em que é preciso sair da lei, abandonando os pretendidos procedimentos lógicos e buscando fora dela a solução. Desse modo, fica reduzida a questão a uma discussão terminológica: a de se é adequado ou não chamar lacuna jurídica a falta de lei aplicável. Na realidade, seria desejável prescindir da palavra lacunas, tão pouco exata, como das múltiplas classificações que delas se tem feito (tradução própria)”.

Por derradeiro, Diniz (2002) consigna que “o termo lacuna esconde idéias díspares e antagônicas, sendo bastante nebuloso”[53].

Do exposto, percebe-se que o assunto relativo às lacunas compreende diversos posicionamentos doutrinários, sendo uma questão aberta, comportando várias respostas a depender das premissas que são abordadas.

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